Via Blog do IMS.
Em primeira mão...
Hélio
Fernandes
Luciano Carneiro perseguia o êxito, mas não se
importava com o sucesso. O que lhe interessava, o que o empolgava, e se
transformava na sua preocupação máxima, era a missão cumprida. E nisso ele
nunca falhou. Aparecendo profissionalmente num meio deformado pela ambição e
glória do sucesso a qualquer preço, num meio que exigia como norma de conduta
que os repórteres atropelassem os paginadores para conseguirem destaque para
seus próprios nomes e fotografias em prejuízo do assunto, Luciano, sem alarde,
sem gritaria e sem protestos exagerados, mas com firmeza e determinação, impôs
um figurino novo: o do repórter sério, discreto, mas preocupado com a sua
repercussão.
E o fato de em tão pouco tempo de vida e de atividade,
ter conquistado nome e reputação internacionais, prova que ele estava certo: o
público pode aceitar o sensacionalismo, pode mesmo conhecer na intimidade os
campeões desse sensacionalismo, mas só consagra e venera os outros, os
verdadeiros jornalistas.
Machão sem arrogância, tímido sem ingenuidade,
humilde sem subserviência, Luciano nasceu e viveu para o jornalismo. Um famoso
professor da Universidade de Yale, respondendo certa vez a um jovem que lhe
perguntara qual a melhor maneira de ser jornalista, aconselhou: “Seja
jornalista 24 horas por dia, ou jamais será jornalista.” Provavelmente sem
conhecer esse conselho, Luciano seguiu-o à risca, sem plano e sem esquemas
preestabelecidos, atendendo apenas à imposição de uma vocação irresistível.
Profissionalmente, ele pensava apenas no
jornalismo, e desconfio que jamais tenha passado pela cabeça que pudesse ser
outra coisa além de jornalista. E exercendo a profissão mais poderosa do
século, a mais cortejada, a mais tentada e a mais seduzida, manteve-se fiel a
ela imune e indiferente a todas as seduções, a todas as tentações, a todas as
propostas, mesmo as legítimas, mas diversionistas.
Sem fazer um jornalismo de liderança, Luciano
fazia, no entanto, um jornalismo de vanguarda. E sobre os rumos, as contradições,
as conveniências, os caminhos e os descaminhos do jornalismo, mantivemos um
diálogo e um debate tantas vezes interrompido, sem divergências fundamentais,
sem choques, mas indisfarçadamente diferente nos objetivos e na orientação.
Eu acreditei sempre (e continuo acreditando) que em
determinado momento o jornalismo se liga indissoluvelmente à política,
completa-a, completando-se também. Luciano pensava de forma inteiramente
diversa. Para ele, a política não estava acima do jornalismo, mas estava além
dele. Não compreendia o jornalismo, a não ser como um todo, o completo em si
mesmo, independente e liberto de qualquer limitação ou contato.
Acreditava a sério (só fazia as coisas a sério) no
princípio antiliberal, que jornalismo é apenas informação. Sobre este ponto
nosso debate foi longe, durou anos, e nunca pude impor-lhe a minha convicção:
jornalismo é informação, mas é também e principalmente opinião.
Mas embora sem conseguir persuadi-lo, sempre estive
convencido que ele algum dia evoluiria para a posição correta, conquistada com
a maturidade, a perspectiva exata, a noção perfeita de como a opinião (franca e
leal e não diluída tendenciosamente) no jornalismo é importante e mesmo
fundamental. Tão fundamental, quanto a informação. Tão indispensável quanto
ela.
Luciano, sendo um repórter nato, foi também no
Brasil o que mais se preparou para o exercício perfeito da profissão. Era
múltiplo e vários, pois considerava que um bom repórter não era apenas o que
sabia escrever e fotografar. Pode-se dizer que Luciano traçou deste cedo, o seu
destino de repórter, e cumpriu-o religiosamente. E ainda no avião sinistrado,
seu corpo foi encontrado, na cabine do comandante, como a demonstrar que mesmo
no avião, numa viagem onde quase nada acontece (ou acontece o irremediável).
Luciano estava atento, preocupado em fazer alguma
coisa, em trazer material para a sua revista e para o seu público. E o mais
fabuloso e o mais sincero elogio, e o mais extraordinário cumprimento que um
repórter poderia receber, ele o recebeu sem saber, já depois de morto: pois
quando se soube que sua máquina fotográfica ficara milagrosamente intata, todos
os jornalistas que o conheciam pensaram instantaneamente: Luciano deve ter
feito alguma fotografia do avião caindo. Mas infelizmente pela primeira vez em
sua carreira ele não obtivera êxito e perdera a reportagem e a vida.
Quem conhecesse Luciano, apenas superficialmente,
não teria a impressão exata da sua força de repórter, pois era tranquilo
demais, repousado sem a agitação e a inquietação natural do repórter jovem.
Luciano gostava de viver, tinha mesmo uma certa pressa de gastar a vida e isso
demonstrou fazendo tanto em tão pouco tempo, vivendo em 33 anos mais do que
muita gente em 50 ou 60.
Talvez fosse uma secreta intuição de que lhe
faltava tempo, o que impelia a viver assim. Procurava muito os amigos, nunca
estava triste, dava-se inteiro, sem exigir nada em troca. Tinha sede de
amizade, de contatos pessoais, e uma esplendida capacidade de sentir, de pensar
e de exprimir.
Sua sensibilidade em alguns pontos, era mais de
poeta do que de repórter. Teófilo de Andrade, falando no “hall” do edifício de
“O Cruzeiro” (que seus colegas pediram ao embaixador Assis Chateaubriand, que
passasse a denominar-se “Edifício Luciano Carneiro”) teve uma expressão feliz,
quando disse que a cada vez que voava, Luciano volta com as mãos cheias de
estrelas. E como voou muito, como durante muito tempo não fez praticamente
outra coisa, suas mãos já transbordavam, as estrelas se faziam mais visíveis,
se acumulavam, eram incontáveis.
Se alguém tivesse perguntado a Luciano Carneiro,
qual a homenagem que mais desejaria receber depois de morto, na certa que ele
teria escolhido a mais tocante, a mais emocionante, a que nenhum repórter até
hoje recebeu: seus companheiros de profissão, colegas da mesma revista e
concorrentes de outras organizações, mas todos repórteres, debruçados chorando
sobre seu corpo, e despejando sobre ele pilhas de filmes virgens,
deliberadamente velados.
E os filmes assim espalhados sobre o seu corpo, cobrindo
todos o seu caixão, eram mais bonitos e mais expressivos que flores, eram uma
forma nova de condecoração, que todos os repórteres, concediam coletivamente,
ao que entre eles fizera jus ao título de número 1.
Da sua esplendida geração Luciano foi o que sempre
esteve mais ligado a mim, embora por uma curiosa coincidência, fosse o único
que jamais trabalhara comigo.
Entrando para “O Cruzeiro” pouco tempo depois de eu
ter saído (eu deixei a revista em agosto de 1948, e ele chegara em outubro do
mesmo ano) não nos encontramos depois nesses 11 anos nem uma só vez, sob o
mesmo teto jornalístico. Mas nos acompanhávamos mutuamente, nos analisávamos
com a frieza e com a isenção que só se obtém com a verdadeira amizade, com a
compreensão sem rivalidade, com a certeza de que tudo que dizíamos um ao outro,
era no próprio benefício comum, e representa uma opinião sincera emitida sem
constrangimento.
Luciano mais do que ninguém de sua geração tinha
esse dom especial de estimular, de incentivar, de convencer. Cinco anos mais
moço do que eu, realizou muito mais, embora procurasse sem falsa modéstia, mas
com toda a sinceridade, evitar uma comparação em que levaria evidente vantagem.
A morte de Luciano, foi a maior perda do moderno
jornalismo brasileiro. E para mim pessoalmente, foi o mais intenso choque
emocional que sofri em toda a vida. A mesma coisa me dizia 24 horas depois do
seu enterro o pintor Enrico Bianco, também grande fraternal amigo de Luciano.
Não posso me acostumar a esta perda, não consigo encontrar a palavra exata para
definir meus pensamentos, palavra que ao mesmo tempo ser simples bastante par
ser autêntica, e bastante grande para atingir a profundidade dessa tragédia.
Sei que nenhuma palavra conseguirá destruir a surdez definitiva do destino.
Gostaria, sem sentimentalismo equivocado, de dar
pelo menos uma ideia aproximada do que representa a morte de uma pessoa como
Luciano Carneiro. Não consigo. Mas também não tem importância. Luciano sempre
soube que a morte é o fim de um sonho, a vida é uma irrealidade que só por
alguns instantes sobrepõe a realidade cruel e derradeira que é a morte. Luciano
não gostaria de ter morrido prosaicamente, disso tenho certeza absoluta. Como
tenho certeza de que ele continuará a existir, amanhã, ainda amanhã, e sempre. Os
homens que morrem cedo, não chegam a conhecer a tortura de não ter sido. Em
compensação, deixam indelével, a saudade do que poderiam ser.
O artigo saiu no Diário de
Notícias de 27 de dezembro de 1959, que pode
ser consultado na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.
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