HELIO FERNANDES
Publicada em 04.08.14
Em 1963, fui preso e levado para a Barão de Mesquita, ainda não havia o
Doi-Codi. Só em 1968, 5 anos depois seria criado, comandado, tornado símbolo da
crueldade e da tortura, tendo como maior autoridade, o general Orlando Geisel.
Como a comissão da Verdade está provando e desvendando, esses generais não
torturavam pessoalmente tinham subalternos que “cumpriam ordens”. Iam
assassinando, sendo promovidos, passados para a reserva, vinham outros.
Essa comissão da Verdade só foi criada e instalada com mais de 30 anos
de atraso, todos os generais de 3 ou 4 estrelas, responsabilíssimos, já haviam
morrido. Na Argentina e no Chile, os mandantes e não os coadjuvantes, morreram
na cadeia, numa cela, sem o menor conforto, embora não tenham sofrido tortura
física.
O primarismo do SNI
Criado junto com o golpe de 64, o equipamento tinha pelo menos 100 anos
de atraso. E os que tentavam gravar “todas as conversas” eram de incompetência
colossal. A começar pelo major, depois Tenente-Coronel Golbery do Couto e Silva
que se julgava um gênio. Seu último cargo foi esse que citei, mas como existia
a imoralidade de receber duas promoções ao passar para a reserva, se
transformou General.
Comandou o SNI desde a sua criação, mais tarde acumulou a chefia do SNI
com a presidência da Dow Chemical, a maior fabricante de napalm do mundo,
responsável por milhões de assassinatos nas mais diversas “guerras localizadas”
como a do Vietnã. Nada lhe aconteceu, morreu fétido de responsabilidade, embora
se julgasse a própria santidade de impunidade e da indignidade.
Minha primeira prisão, julgamento no Supremo
Hoje não existe mais nenhum sigilo, tudo de sabe na hora, ou até antes
de acontecer. Qualquer pessoa na maior inocência ou ingenuidade, pode estar
conversando com alguém, e tudo sendo gravado, com um celular no bolso do outro.
Há algum tempo fui falar para centenas de aluno da PUC de São Paulo.
Eles iam chegando, colocavam ou jogavam o celular em cima da mesa horizontal.
Quando se satisfaziam e iam embora, era só apanhar o aparelho, estava tudo ali.
Não havia mais trabalheira e a complicação da preparação, microfones.
No dia 22 de julho de 1963, antes do golpe todos conspiravam. Generais,
governadores, membros do governo. Recebi envelope com uma circular assinada
pelo ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro. A fonte, excelente, me
entregou ainda no envelope original, com o carimbo: “Sigiloso e confidencial”.
Publiquei, claro. Fui preso no mesmo dia. Também no mesmo dia Millôr
escreveu: “Não quero defender o Hélio por ser meu irmão mas um jornalista que
recebe circular sigilosa e confidencial, assinada por um general ministro da
guerra, e não publica, é melhor que abra um supermercado.”
Publiquei, claro. Fui preso no mesmo dia. Também no mesmo dia o Millôr
escreveu: “Não quero defender Helio por ser meu irmão. Mas um jornalista que
recebe circular sigilosa e confidencial, assinada por um general ministro da
Guerra, e não publica, é melhor que abra um supermercado”.
Meus advogados, que não conseguiam falar comigo, estava incomunicável,
entraram com Habeas-Corpus no Supremo, na época presidido pelo bravo, combatente
e resistente Ribeiro da Costa.
Os advogados que me representavam, eram quatro. Sobral Pinto, que
defendeu presos políticos em duas ditaduras, a do “Estado Novo” de 1937 e a dos
generais de 64. Hoje é nome de edifício onde a OAB Regional e a IAB Nacional,
diante de multidão de advogados, homenagearam o bravo, competente, lúcido e
resistente, George Tavares. Isso aconteceu na semana passada.
Prado Kelly, notável advogado e jurista, depois presidente da OAB
Nacional, Ministro da Justiça e finalmente Ministro desse mesmo Supremo. Adauto
Lucio Cardoso, advogado, deputado, fez um libelo contra a minha prisão. Mais
tarde também ministro do Supremo, saindo de lá, não pela aposentadoria e sim
com o ato, o gesto e a convicção de em plena sessão tirar a toga e com audácia
e determinação, joga-la no chão, exclamando: “Este não é o Tribunal que eu
imaginava”. E foi embora.
E finalmente Prudente de Moraes Neto, umas das mais invulgares figuras
que conheci. Depois de me defender, foi presidente da SUUMCC, daí surgiria o
Banco Central. Diretos do Diário Carioca (este repórter, mocíssimo era diretos
da redação, ele era o diretor responsável), mais tarde presidente da ABI em
plena ditadura.
Usou a presidência dessa notável ABI para liderar ou melhorar a situação
de dezenas de jornalistas, presos políticos. Sua atuação épica, histórica,
maravilhosa, foi em relação ao jornalista Maurício Azêdo, (depois presidente da
ABI), um dos presos mais torturados. Durante três meses, Prudente quase todo
dia saía da ABI, ia ao Ministério da Guerra, conversar com o
Ministro-chefe-do-Doi-Codi, tentando a libertação de um dos mais torturados de
todos os tempos.
Finalmente conseguiu a libertação do Maurício. O próprio general Geisel
disse a ele: “Amanhã às 9 horas, o jornalista será solto, o senhor pode ir
buscá-lo”. Prudente foi com um amigo e o motorista. Maurício Azêdo, quase
morto, foi entregue a ele. Emocionante, lancinante, comovente são as palavras
obrigatórias para lembrar o ato e o fato. Abraçados Prudente e Mauricio
choravam sem parar, não há como descrever.
Há um foto que circulou durante muito tempo na internet. Impossível
transcrever a emoção provocada pelo episódio, dois homens públicos notáveis,
realizados, generosos, desprendidos, chorando abraçados, não conheço nada tão
admirável. Era o auge da rebeldia construtiva. Depois da resistência do
sacrifício e da tortura, as lágrimas não pela libertação mas sim pela
liberdade.
Julgamento assustador
Todos diziam, até mesmo no círculo jurídico se comentava: “Com essa
seleção de advogados, o Helio Fernandes será absolvido facilmente”. Exatamente
o contrário. Fui enquadrado na Lei de Segurança, pediram 15 anos de condenação.
O julgamento terminou em quatro a quatro. Além dos extraordinários
advogados, tive a sorte de ter na presidência do Supremo, Ribeiro da Costa.
Pela Constituição e pelo Regimento Interno do Supremo, o plenário só poderia
julgar com 8 ministros presentes, menos do que isso, nenhum julgamento.
Palavras do presidente Ribeiro da Costa: “Vou levantar a sessão por
alguns minutos, voltaremos para cumprir a obrigação constitucional, desempatar
a votação”. E esclareceu: “De acordo com o que está determinado na Constituição
de 46 posso desempatar contra ou a favor do jornalista”.
Voltaram, num brilhante voto de improviso, me absolveu, com a afirmação
– conclusão: “O jornalista não devia nem ter sido preso,
acusado e julgado. Apenas publicou um documento assinado levianamente, o
conhecimento do documento serviu a coletividade”.
PS1- Em toda a
história da República, fui e sou o único jornalista JULGADO pelo Supremo de
corpo presente. Muitos, incluindo Rui Barbosa, foram PROCESSADOS, o que é
inteiramente diferente.
PS2- Hoje não há
mais sigilo para coisa alguma. As novas tecnologias não vão matar o jornal
impresso, longe disso. Só que agora a velocidade das notícias é a mesma que
Einstein colocou na sua genial Teoria da Relatividade.
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